<< Document(o)s - Artefatos de Memória e Memórias de Artefatos
primitivos modernos/modernistas
primitivos modernos/modernistas
Em 1929 foi publicado o primeiro número de Documents : doctrines, archeologie, beaux-arts, ethnographie. A proposta plural e indisciplinada da publicação não foi transformada em mais um manifesto modernista. Se fez notar pelo envolvimento e participação de autores - poetas, músicos, escritores, etnólogos, arquivistas, artistas plásticos e fotógrafos - ao longo de cerca de dois anos. A atitude descompromissada que os aproximava parecia convergir em um interesse por produzir, criar e reunir documentos. Associações, colagens, possibilidades de estabelecer conexões movidas por sons, inspirações passageiras, convergências sonoras. Documentos como matéria-prima para novas e, talvez, incessantes associações. Fruição do pensamento transformada em artefato moderno, coletável e suscetível a outros olhares e impressões. Flores, frutos da inspiração, dos afetos, dos compromissos, documentos de cultura e barbárie das primeiras décadas do novo século. Instantâneos da vida urbana, seus encontros turbulentos com as utopias de transformação social, com as maquinações inesperadas das tecnologias, desprezo pelos olhos do esteta, a desconfiança da genialidade do artista, simpatia para com o visionário, sedução frente ao primitivo. O fazimento de documentos não teve vida longa como um projeto coletivo. A revista jamais foi projeto, mas afetos. Os frutos e as reverberações do que foi produzido, esboçado e, por vezes, apenas listado em Documents estão espalhados. Para enxergá-los precisamos exercitar um tipo similar de intuição e associação entre os temas, as imagens e as ações ali experienciadas. Quase cem anos após o seu aparecimento, Documents ainta suscita reflexões. Autores como Michel Leiris, André Breton, Claude Lévi-Strauss, Alejo Carpentier…nada tinham em comum. Ao povoarem os sumários da revista, revisitarem temas aparentemente tão díspares e por meio de estilos igualmente dissonantes, procuraram enfraquecer as fronteiras entre as ciências da natureza, os claustros em torno do gosto e da arte, o estudo das 'culturas antigas' (que a arqueologia, de forma sedutora e colonialista, revelava) e os ritmos e sons da polifonia produzida pelo jazz do outro lado do Atlântico. Não seria o desejo de ser moderno -- ao menos aquele experienciado pelos partícipes de Documents -- duvidar das fronteiras, apartações disciplinares, estéticas e existenciais que separavam o 'social' e o pensamento/a criação ? |
Resumos - Série Antropologias Modernas/Modernistas: document(o)s
Lorenzo Macagno (UFPR) Modernismo, pan-africanismo e “novas sensibilidades” etnográficas: a propósito do diálogo entre Franz Boas e Kamba Simango Kamba Simango nasceu no centro de Moçambique, em 1890. Em 1914, sob a égide dos missionários da American Board of Missions, é enviado aos Estados Unidos para estudar no Hampton Institute, um colégio onde “afro-americanos” e jovens provenientes da África aprendiam ciências, literatura e trabalhos manuais. Em 1919, após finalizar os seus estudos no Hampton Institute, é enviado ao Teacher College, em Columbia, onde permanecerá até 1923. Imediatamente após a sua chegada em Columbia, conhece o antropólogo Franz Boas, de quem se tornará colaborador. Naquele período (1923-1926) Portugal e suas colônias africanas passavam por intensas mudanças. Em 1926 se inicia o chamado Estado Novo. Em seguida, o nacionalismo econômico e cultural promovido pela influência do salazarismo (1928-1968) coloca em primeiro plano os problemas coloniais. Do ponto de vista jurídico, Kamba Simango era um súbdito de Portugal. No entanto, sua experiência nos Estados Unidos o afasta, cada vez mais, do “mundo português” e o reaproxima à diáspora africana de língua inglesa. Os anos de Kamba em Nova York coincidem com o início do chamado Harlem Renaissance, um momento no qual as vozes incipientes do pan-africanismo conviviam com uma plêiade de escritores, poetas, pintores, escultores e músicos negros. Nessa época Kamba se tornará, também, amigo de W. E. B. Du Bois. Em Nova York realizará, também, várias “performances” teatrais para um público cada vez mais interessado na dança e na música negra. Tratava-se do momento, nas palavras de George W. Stocking, Jr., de uma nascente “sensibilidade etnográfica” nos Estados Unidos, em que os jovens aspirantes a etnógrafos participavam, também, do “modernismo cultural” e da boemia do Greenwich Village. Após seu retorno dos Estados Unidos – e com uma breve passagem por Inglaterra e Portugal – Kamba se instala em Moçambique. Não tardarão em chegar as tensões com os missionários protestantes, para os quais trabalhara, e com a administração portuguesa. Nesse interim, Kamba decide se exilar em Ghana onde a liderança de Kwame Nkrumah ganhava cada vez mais protagonismo. Agora, uma nova gramática imperial irrompe no mundo lusófono: o lusotropicalismo de Gilberto Freyre. Trata-se de um período (1950-1960) em que Portugal imaginava, ainda, um “futuro português” para suas Províncias Ultramarinas, incluindo Moçambique. Como entender, nesse contexto, a experiência cosmopolita e “moderna” de Kamba Simango? Qual é o peso que podemos atribuir à influência de Franz Boas nessa trajetória? Ou teriam sido as ideias pan-africanistas de Du Bois as que determinaram seu destino? E que papel tiveram os missionários da American Board? Quais foram as concepções de raça e cultura que mobilizaram a sua experiência? Para abordar esses interrogantes indagamos, sobretudo, um intercâmbio epistolar inédito entre Kamba Simango e Franz Boas. Fernanda Areas Peixoto (PPGA/USP) O olho do etnógrafo e o arquivo do escritor: Leiris e Bataille em ‘Documents' - resumo Mediação: Amir Geiger (PPGMS/UNIRIO) Proposição: a ideia antropológica clássica de etnografia, constituída ao longo da primeira metade do século XX, tem vínculos fortes, intrínsecos, com o modernismo, considerado aqui, não como movimento, estilo ou época, mas como uma espécie de covalência ou ligação paradoxal entre duas tendências – vanguarda e primitividade – identificadas sob o modo da utopia. Associadamente, o problema da autenticidade foi uma espécie de feedback positivo entre duas ‘outras cenas’: a de uma resistência interna à civilização e de uma tangencialidade externa (a trinca: loucos, crianças, selvagens), de modo que ela operou como ‘elétron compartilhado’ entre a vanguarda e o primitivo; em outras palavras, não foi pensada (por autores como Georg Simmel, Edward Sapir, Walter Benjamin, Lévi-Strauss, Gregory Bateson) como substância ou propriedade objetivamente presente em certas práticas ou objetos, mas como uma tendência criativa, ou performatividade vital dos paradoxos ou feedbacks negativos inerentes a qualquer ‘sistema’ ou ‘mente’. A ideia é de que a etnografia assim entendida (para alem de uma prática metodológica) pode ser ‘extrapolada’ como experiência autêntica contemporânea, como núcleo experiencial de um “campo antropológico” transdisciplinar, por sua vez expandido daquele momento clássico para um viés pós-cibernético e, frouxamente, do paradigma ecológico. A hipótese é que desse ponto de vista – consistente com o da memória social – patrimônio pode ser entendido (em linha epistemológica e politicamente secante à do Estado-nação) como um artefato propiciador de relações etnográficas. Ou, simetricamente: a busca de uma relação brasileira – periférica, interétnica, trans-histórica – entre patrimônio e autenticidade significou um vetor, ainda não cancelado, de reapropriação das ondas de modernização técnica-econômica. Sinteticamente: se tomarmos o Manifesto Antropófago (de Oswald de Andrade) e seu gêmeo, Macunaíma (de Mario de Andrade), como o teorema e a demonstração modernistas (a articulação local de vanguarda, primitivismo e utopia libertária), o patrimônio de linhagem mario-andradina pode ser transformado em operação de desconstrução do Estado e reapropriação não ressentida do comum: matriz (matri-, não patri-) de um fratrimônio, que já nao é guia de identidade, mas necessária e livremente gaia, capaz de transmutar e vencer o progresso do império.
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