Juliane Oliveira: Notas de campo sobre a herança Gangá-Longobá em Matanzas, Cuba (2023-2024)30/5/2024
Iniciei o meu trabalho de campo em novembro de 2023, no município de Perico, interior da província de Matanzas, em Cuba. Lá, fiz o primeiro contato com a herança Gangá-Longobá no “Retiro la Selva”, um quintal-ateliê (composto de arte e plantio) assim nomeado por seu criador Alfredo Duquesne Mora (“El Duque”). Duque é o escultor conhecido como o “último artista Gangá-Longobá vivo” e o maior artista de Matanzas, que está entre os maiores de Cuba (ele foi aluno do primeiro homem negro a acessar a universidade de Artes, após a revolução, e conta isso com orgulho). O nome “Gangá-Longobá” tem designado o grupo familiar de “afrodescendentes” ao qual Duque pertence.
O grupo foi declarado pelo governo cubano como “portador de cultura imaterial”, cujas raízes remontam a presença de seus ancestrais em Serra Leoa, África Ocidental. Dois documentários foram produzidos sobre ele. Um deles, da década de 1980, explorou as cerimônias religiosas dedicadas a divindade Yebbé (senhor das enfermidades, sincretizado com San Lázaro). Para o outro, a cineasta australiana Emma Christopher (2014) organizou uma viagem que levou Duque e alguns membros da família para um (re)encontro com seus prováveis conterrâneos em Serra Leoa. O nome escolhido para o filme foi “They are We”, porque essa era a frase que algumas pessoas da comunidade local repetiam ao verem a família de Duque bailar e cantar. Segundo a antropóloga colombiana-italiana Alessandra Bassos Ortiz (2005), “gangá” seria um termo recorrente que emergiu durante o período escravista das plantations para identificar grupos de pessoas trazidas de África para o trabalho forçado nos engenhos cubanos. E o “Longobá” seria referente ao nome de um rio que atravessava algumas aldeias em Serra Leoa. Perguntei para Duque o que era Gangá-Longobá e ele me respondeu assim: “é família, é sangue do meu sangue e é um modo de viver deixado pelas minhas ancestrais” (ele geralmente se refere no gênero feminino porque costuma creditar tudo o que aprendeu de “sua cultura” às mulheres da família, desde a “Vieja”, uma ancestral cultuada como morta, até a sua avó, sua mãe e suas tias). Duque costuma definir esses modos de viver de forma variada. Ele inclui a sua relação com espíritos e mortos ancestrais, a relação com a comida ou com o momento de comer; a sua sabedoria sobre as medicinas naturais e ao fato dele sentir as “forças vitais da natureza” (ele diz que quando move as pedras no quintal, quando planta ou quando toca em qualquer árvore, ele sente a energia de seus ancestrais porque isso estaria no sangue dele). Inclusive, muitas pessoas vão até o seu “Retiro la Selva” em busca de medicina natural - quanto mais falta nas farmácias, mais as pessoas o procuram. Mas ele afirma veementemente não ser religioso e se considera um poeta que carrega no sangue essa herança. Uma autopercepção que escapa a certa análise de Ortiz (2005). No livro “Los gangás en Cuba”, a antropóloga desenvolve duas teses principais: a primeira, argumentando que o único aspecto sobrevivente da herança Gangá-Longobá em Cuba seria a religião, que estaria sob ameaça de desaparecimento; a segunda, defendendo que a perda dos elementos (tanto “culturais” quanto “religiosos”) do grupo, seria resultado da inexistência de um “sistema mitológico” para fornecer uma explicação de mundo aos seus praticantes. Segundo a autora, as perguntas sem respostas levariam a uma perda de interesse. Por consequência, os praticantes buscariam e se apegariam as explicações fornecidas por outros “sistemas religiosos”, como aquelas do Ifá Cubano ou da Santeria, por exemplo. Do meu ponto de vista (bastante limitado e parcial, diga-se), faz sentido imaginar que a falta de um modelo explicativo de mundo possa afetar o interesse das pessoas. Entretanto, tenho dificuldades de aceitar a tese de que o único elemento sobrevivente da herança Gangá-Longobá seja aquilo enquadrado como religião. Além da minha própria desconfiança com esse tipo de enclausuramento de aspectos da vida dentro de categorias muito fechadas, a experiencia de Duque também me parece apontar o contrário. Ele mesmo, quando discutíamos sobre o referido livro, confessou não estar de acordo com certas questões apresentadas nele. Uma delas referindo-se, justamente, ao modo como a herança de suas ancestrais apareceria de forma reducionista. Ainda que Duque também manifeste preocupações quanto a “sobrevivência das práticas longobás” consideradas religiosas, ele não se considera religioso. As referências aos saberes herdados de suas ancestrais, embora resguarde relações com mais-que-humanos e extra-humanos, não aparecem descritas como parte de um “sistema religioso” em suas falas. Ele me disse isso diretamente na primeira vez que conversamos. Na ocasião, ele fez uma afirmação de que não era religioso. Eu reagi perguntando: “ué, você não é religioso? Então o que é Gangá-Longobá?”. Foi aí que ele me respondeu: “é minha família, é sangue do meu sangue e é um modo de viver deixado pelas minhas ancestrais” (conforme mencionei anteriormente). A herança Gangá-Longobá transborda e resiste. No breve convívio com Duque, pude perceber como ela permeia sua subjetividade, seus afetos, suas práticas artísticas, o seu comer, sua compreensão de espaço, sua forma de comunicação com as forças vitais presentes nas madeiras, nas pedras, plantas, árvores etc. Me parece limitado, portanto, resumir os seus movimentos sob categorias analíticas fechadas: porém, ainda cultivo mais dúvidas do que respostas a esse respeito. Por ora, penso que a maneira como espíritos, mortos e deidades mediam suas relações cotidianas desenham um sutil modo de *“viver ancestralmente”, que pulsa entre (re)invenções ‘culturais’ locais e memórias transatlânticas nutridas no imaginário sobre a relação com Serra Leoa. Referência Bibliográfica [*Parafraseando] Johnson, C. “The Dead Don’t Come Back Like the Migrant Comes Back”: Many Returns in the Garifuna Dügü. In: Passages and Afterworlds. Duke University Press, p. 35-37, 2018. Ortiz, A. B. Los gangás en Cuba. Fundación Fernando Ortiz, 2005. Comments are closed.
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