É no extenso costeiro de Conceição de Salinas, um dos maiores da região do Recôncavo Baiano, que pescadores, marisqueiras, garças, siris e demais seres fazem seus caminhos. Do passeio em pedra portuguesa da orla, tanto do Gravatá quanto mais adiante na Rua da Praia, é possível avistar as cores, bem como os criativos nomes, gravados nas embarcações a motor atracadas. Vistas da Rua da Praia, as embarcações encontram-se na areia enlamaçada, algumas mais próximas do parapeito que contém a quebra do mar, outras já mais distantes, adiante na Baía de Todos os Santos. A reconhecida expressão pesqueira de Conceição, propiciada por uma localidade que potencializa a produção marítima da região, pode ser notada pela quantidade e pelo colorido das embarcações que compõem o horizonte das águas salgadas da baía.
A maré seca abre caminho em direção aos manguezais avistados ao fundo das fotografias. Já com os pés afundados na lama, pegadas de diferentes seres se misturam aos mariscos, aos guiguis e aos siris, que podem morder os pés dos que caminham desatentos. Garças podem ser vistas em torno – e por vezes em cima – de algumas embarcações, possivelmente atraídas pelo cheiro dos pescados recém apanhados. É também no interior das embarcações que estão guardadas lonas, munzuás e redes, dentre outros instrumentos utilizados para a pesca artesanal, esta que garante o alimento e o sustento daqueles que do mangue e da maré vivem e se beneficiam. Dentre os trabalhos realizados, a mariscagem é exercida. Após mariscar, é feito o beneficiamento do marisco. Da limpeza, o pré-cozimento é realizado, este, por sua vez, antecedendo a catagem para a posterior embalagem e venda. No dia 11 de março João Alipio de Oliveira Cunha realizou no Colégio Estadual Rio de Areia uma roda de conversa intitulada “A presença negra na história do Paraguai: a guerra Guasú e as lutas de resistência”, com as turmas 3001 e 3002 e em parceria com a professora Geraldyne Souza. Os dados históricos e etnográficos apresentados na roda de conversa fazem parte da pesquisa de doutorado “Composições e modos de ser Kamba: associação, máscaras e lutas por reconocimiento” realizada por João Alipio de Oliveira Cunha, no âmbito do projeto financiado pela FAPERJ “Entre a Plantation e o Plantationceno teorias etnográficas sobre os refúgios e as rotas de fuga, (FAPERJ CNE 2022)” - saiba mais
Cunha, Olívia Gomes da. 2022 "Two Ways Of Being Water: from the point of view of submerged worlds". The Perfect Storm. Diffrakt: Centre For Theoretical Periphery, 23/2/22. Link
Os Kali'na das aldeias da costa leste do Suriname levam os Sampula, tambores sagrados, para o Festival Internacional Carifesta, realizado em junho de 2013 em Moengo, Suriname. O vídeo foi realizado por Olivia Cunha com edição de Helena Monahan. Para assistir, acesse a página do LAH no YouTube. Link.
Gamelan (Olivia Cunha & Helena Monahan, 2023, 16:17 min). O documentário feito com imagens captadas durante a pesquisa de campo de Olivia Cunha no Suriname em 2013 está online nas plataformas Youtube e Vimeo.
Nos dias 28 e 29 de fevereiro o presidente Luiz Inácio Lula da Silva esteve em Georgetown, capital da Guiana. O brasileiro foi o convidado especial da 46ª Cúpula de Chefes de Governo da Comunidade do Caribe, o Caricom, que possui sua sede na cidade. Eu havia chegado na Guiana há três semanas, retomando o trabalho de campo para minha pesquisa de doutorado, iniciada em 2022, em torno das controvérsias que envolvem a instalação da indústria petrolífera no país nos últimos anos. Marcelo Mello, colega antropólogo e professor, que também estava por aqui realizando pesquisa, propôs que fossemos tentar acompanhar a chegada de Lula na cidade. Como em campo tudo pode acontecer, pensei “por que não?”.
Saí de casa e peguei um minibus – principal modalidade de transporte público no país – em direção a Georgetown. No caminho de ida, ao passar pela rotatória de Kitty, localizada no principal ponto de entrada de Georgetown para quem vem da costa leste da região de Demerara e de Berbice, a chegada de Lula se anunciava. Rodeado por bandeiras da Guiana e do Brasil, um outdoor com as fotos de Irfaan Ali, presidente da Guiana, de um lado, e de Lula, do outro, dava as boas vindas ao presidente brasileiro. Já me aproximando do destino, desci do minibus e caminhei em direção ao hotel. As vias públicas que davam no Marriott receberam bandeiras dos países membros e territórios associados do Caricom e o trânsito era controlado por policiais. Na entrada do hotel, vejo um outdoor similar ao visto na rotatória e passo posso detectores de metal que recepcionavam os hóspedes e visitantes. Os detectores estavam ali ao menos desde a semana anterior, quando o hotel sediou a Guyana Energy Conference & Supply Chain Expo, evento que reuniu políticos, empresários e funcionários de empresas do ramo de Óleo e Gás. Já no hall, repórteres aguardavam em uma área exclusiva para a imprensa. Além de veículos guianenses e de outras partes do Caribe, notei a presença de jornalistas da GloboNews, CNN Brasil e R7. Seguranças, membros da equipe do governo brasileiro e funcionários da Embaixada Brasileira em Georgetown estavam espalhados em grande número pelo local e conversavam entre si. Marcelo já havia chegado e estava sentado em uma área com sofás. Ele me apresentou a um trio de empresários do Rio Grande do Norte que acabara de conhecer e que estava na Guiana para prospectar possibilidades de entrada no mercado local de Óleo e Gás. Os homens haviam chegado na noite anterior e comentavam impressionados sobre o número de caminhões que percorriam, já por volta da meia-noite, a estrada que liga o aeroporto à capital guianense – movimentação que também impressiona muitos dos guianenses com quem interajo por aqui, que não raramente comentam sobre os estragos que os veículos, cuja maior parte opera em apoio a crescente indústria de construção civil, fazem no asfalto do país. Enquanto conversávamos, chefes de Estado e dirigentes de países e territórios do Caricom chegavam ao hotel escoltados por policiais da polícia guianense. O modelo dos veículos pretos que os transportavam, Toyota Land Cruiser Prado, é conhecido entre os guianenses por ser o preferido da elite política local. Lembro que na semana anterior, durante a conferência do setor de Óleo e Gás, professores em greve que ocupavam uma rua próxima ao hotel gritavam e soavam suas cornetas e apitos com força especial cada vez que um desses veículos passava. Já naquele dia, a chegada parecia tranquila e à medida que entravam no hotel, os chefes de Estado subiam para o segundo andar, onde as atividades da Cúpula aconteciam. Em dado momento, alguém me chamou pelo meu nome. Surpreso, me virei e reconheci um antigo colega de graduação. Por um instante, imaginei que ele estivesse ali por conta do petróleo, mas ele logo me contou que fazia parte de um pequeno grupo da ABIN que desembarcou na cidade alguns dias antes para avaliar o cenário local e garantir a segurança da comitiva brasileira. Ele voltou ao trabalho e a movimentação que precedeu a chegada de Lula começou. Fomos avisados que deveríamos sair da área dos sofás, que foi liberada. O forte esquema de segurança e o número de funcionários do governo brasileiro dentro do hotel chamou a atenção de Marcelo, que o contrastou com o clima mais tranquilo que vivenciou em 2010, quando esteve com o presidente na Guiana em um evento cultural oferecido na Embaixada do Brasil, durante sua pesquisa de campo de doutorado. Assim que nos movemos para uma área no fundo do hall, uma cena notável se desenrolou: os chefes de Estado caribenhos desceram e se alinharam na entrada do hotel para aguardar a chegada de Lula. Do lado de fora, batedores (em número ainda maior) abriram caminho para o Toyota Prado que transportava Lula e a primeira-dama, Janja. Eles desceram e foram recebidos por Irfaan Ali, e logo depois o presidente brasileiro passou a cumprimentar os outros mandatários. Dei uma risadinha quando vi que Mia Mottley, primeira-ministra de Barbados, foi cumprimentada com dois beijinhos ao estilo brasileiro. Uma foto oficial do grupo foi tirada e o presidente seguiu em nossa direção, a caminho do elevador. Ao passar por nós, Marcelo o saudou com um “Presidente, universidade pública presente!”. Nervoso, consegui dizer apenas “Boa tarde, presidente, UFRJ presente! Como vai o senhor?” e rapidamente apertar sua mão, antes dele entrar no elevador. O objetivo daquela ida ao Marriott, que para mim era ver o presidente do Brasil em terras guianenses, no final foi apenas parte de tudo que pude observar por lá. O modo como o cerimonial foi organizado e conduzido deu indícios das posições hoje ocupadas pelos dois países, Guiana e Brasil. Além disso, pude escutar um pouco sobre as expectativas de empresários brasileiros no país e, após a subida do presidente para o seu quarto de hotel, trocar ideia sobre a Guiana com meu colega de graduação e seu colegas da ABIN, que mostraram ter feito uma extensa pesquisa sobre o cenário sociopolítico do país e, mais especificamente, de Georgetown. Para comemorar o bem sucedido dia de campo, Marcelo e eu fomos almoçar em um restaurante de comida I-tal (Rastafari) e fechamos com uma cerveja na área mais movimentada de Georgetown, a do mercado de Stabroek. De noite, já em casa, assisti o discurso de Lula na sessão especial daquele dia. O presidente ressaltou as proximidades entre o Brasil e o Caribe – “Belém, Boa Vista e Manaus estão mais próximas de capitais do Caribe do que de outras grandes cidades brasileiras” – e ressaltou querer retomar com os países do Caricom os projetos de cooperação sul-sul que marcaram os seus dois primeiros governos. O desejo, segundo Lula, é de “literalmente, pavimentar nosso caminho para o Caribe”, referindo-se em parte à estrada que liga Lethem, cidade da Guiana que faz fronteira com Roraima, a Georgetown. A pavimentação dessa estrada, promessa do governo guianense para seus cidadãos ao menos desde os anos 1980, é um dos muitos projetos de infraestrutura financiados com recursos oriundos da exploração petrolífera da costa da Guiana e atualmente é conduzido por uma empreiteira brasileira. Sobre isso, há muito o que se pensar, mas isso é tema para outra nota. O discurso de Lula na 46ª Cúpula do Caricom pode ser visto aqui https://www.youtube.com/watch?v=gSvubHfKclw&ab_channel=Poder360 ou lido aqui https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-pronunciamentos/2024/discurso-na-sessao-de-encerramento-da-46a-conferencia-da-comunidade-do-caribe. O papel da pesquisa no audiovisual: notas sobre a experiência do filme “Medida Provisória” - Aline Maia Nascimento[1]
Não é novidade que a Antropologia e o Audiovisual são campos que se conectam e que há anos vem estabelecendo diálogos intensos. É possível que você conheça um antropólogo que se dedicou a produzir um filme ou, até mesmo, ter ingressado na indústria cinematográfica como um trabalhador do ramo. O contrário também é provável, um cineasta que se enveredou para Antropologia – alguns orgulhosos por desenvolver trabalho de campo a luz da teoria e do método etnográfico. Eu integro o primeiro grupo, sou uma antropóloga que desenvolve pesquisas para narrativas audiovisuais e que a cada convite para um trabalho a ser realizado no cinema ou na TV se pergunta: “o que a Antropologia pode oferecer para esse produto audiovisual?”. A resposta não é simples e geralmente só é alcançada ao longo do próprio trabalho de pesquisa. Ainda que alguns antropólogos, diretores, roteiristas, produtores ou espectadores esperem que minha função seja dar um “tom realista” a narrativa. É preciso se distanciar do chavão aristotélico que afirma que “a arte imita a vida”. Já sabemos que tanto a Antropologia quanto o cinema são artefatos culturais. Ambos, invenções humanas recentes cujos objetivos não podem ser reduzidos a “traduzir” ou “espelhar” a vida. Talvez, o primeiro passo para responder à questão seja assumir o interesse dos dois campos em construir e conectar mundos, estabelecendo relação entre as coisas e os sujeitos; entre o tempo, espaço e o individuo; explorando e captando leituras de universos particulares. Em 2017, quando o Lázaro Ramos me convidou para realizar a pesquisa para o longa ficcional “Medida Provisória” ele parecia saber bem o que queria com o filme, em tom muito confiante dizia querer provocar diálogos em temas raciais ainda sensíveis (tudo com leveza!) e para isso buscava equilibrar drama com humor. Queria, sobretudo, que em meio ao caos distópico construído no arco dramático, o filme fosse capaz de transmitir amor e despertar o sentimento de orgulho do Brasil e das pessoas que o constitui. A intencionalidade é algo que está sempre presente na linguagem fílmica, pois se trata de um produto que carrega desde sua concepção intenções bem delimitadas. Meu trabalho, geralmente, começa assim que o roteirista já sabe suas intenções. A partir daí, começamos a desenhar como elas serão oferecidas ao público que as degustará conforme suas próprias intenções. A pesquisa se inicia na etapa que chamamos de pré-produção, ou seja, na gênese do projeto. É comum que ela aconteça de forma simultânea a escrita do roteiro. Como costumam dizer, a pesquisa pode ser usada para “aperfeiçoar” / “melhorar” o roteiro dando a ele mais possibilidades de desenvolvimento, apontando caminhos ainda não explorados pelos roteiristas. Por vezes, ao pesquisador, também, é atribuída a função de trazer ao roteiro um terceiro olhar, quiçá mais distante, não tão contaminado com as paixões do autor. Há, ainda, uma outra função da pesquisa – para mim a mais empolgante e desafiadora – a tarefa de proporcionar inspirações, estimular a criatividade do roteirista. E por mais que exista um pensamento generalizado de que a criatividade é uma capacidade inata nas pessoas. Ou se tem ou não se tem. Sabemos que essa argumento não pode resistir a nenhuma comprovação séria. A criatividade, na verdade, é uma habilidade que precisa ser exercitada com frequência e a pesquisa é uma ferramenta para seu estímulo. O roteirista quando tem acesso aos dados da pesquisa se coloca em contato com novas experiências e atreve-se a pensar de maneira diferente. Esta imersão estimula sua competência criativa. No caso do “Medida Provisória”, Lázaro enfrentava o desafio de transformar uma peça teatral em um produto audiovisual. Já que o filme é uma adaptação da peça “Namíbia, Não!” de autoria do ator e dramaturgo Aldri Anunciação. Para essa empreitada Lázaro contou com o apoio de mais alguns roteiristas experientes Elísio Lopes Jr e Lusa Silvestre. Quando eu cheguei, Aldri, Elísio, Lusa e Lázaro ainda estavam escrevendo o roteiro, mas o material já tinha passado por alguns tratamentos. Eles tentavam retirar a grande carga teatral do texto. Nos dizeres de Ramos: “aquela peça se aproximava do teatro do absurdo” e sua transformação para o novo formato exigia naturalmente que outros contornos fossem ganhando espaço. Basta lembrar que a peça foi escrita apenas para dois atores – no palco, Aldri e Flávio Bauraqui eram acompanhados por vozes que faziam outros personagens e ajudavam a contar a história. Na primeira vez que li o roteiro para o filme, o time já havia feito algumas escolhas criativas acertadas, como a criação de personagens femininas fortes e complexas que ganharam centralidade na trama. Neste sentido, a pesquisa de personagens veio para endossar o caminho escolhido, apontando em outras histórias e vivências da vida real, mulheres como Capitu, Isabel, Sarah, Izildinha: pessoas comuns, vivendo situações incomuns e criando alternativas para lidar com problemas de ordem coletiva e, também, os seus mais íntimos. Contudo, as mudanças não pararam por aí. No que tange a pesquisa de conteúdo, Lázaro me pediu que eu indicasse temas que pudessem inspirar os roteiristas, colocá-los em contato com uma investigação cultural capaz de ampliar seus horizontes. A partir de uma leitura minuciosa do texto fui elegendo os temas, alguns já se faziam presentes no roteiro (mesmo que de forma tímida), outros se adentrassem poderiam modificar substancialmente os rumos da trama. Para citar alguns assuntos elencados, destaco: a hipersexualização do corpo negro, segregação racial, antissemitismo, aliados brancos, brancos bem-intencionados, a volta a África, povos imigrantes no Brasil, movimentos sociais com composição inter-racial, colorismo, pertencimento nacional, cabelo crespo e aceitação, relações inter-raciais, reparação racial, afrofuturismo, afropessimismo, branquitude, heterogeneidade dos movimentos negros e etc... O material de pesquisa era grande e muito diverso, contendo resultados de entrevistas semi-estruturadas, grupos focais, revisão bibliográfica dos temas, mapeamento de discussões travadas por internautas no Twitter e Facebook, memes que ganharam destaque nas redes sociais, histórias que ouvi em bares, nos transportes públicos... Contos, cenas de outros filmes, trechos de poesias e músicas. Eu costumava enviar os materiais para Lázaro que os lia com afinco para posteriormente debatermos cada ponto. Em nossos encontros, ele se mostrava sempre muito curioso, disposto a ouvir e indagar. Me desfiava a voltar com novos materiais que desenvolvesse ainda mais a história. Se mostrava interessado em escutar o que eu achava dos rumos que a trama ia tomando. Por vezes, ele próprio trazia questões provocativas que me faziam pensar. Como da vez que me perguntou o que eu acharia, se a personagem Capitu (Taís Araújo) esbofeteasse Isabel (Adriana Esteves). As escolhas do que entrava ou saia do texto e de como manejariam esse material de pesquisa nem eram tomadas ali sob minha presença, mas sim na sala de roteiro. De toda forma, era ótimo poder opinar e saber que meus “pitacos” tinham chances de ser “sementes” que poderiam germinar na mente dos criadores. Aos poucos a profissão de pesquisadora no audiovisual vai te ensinando a lidar com mais maturidade com o que chamo de “exercício do desapego” já que nem tudo que você apresenta ao roteirista será incorporado na trama e isso não tem relação com o material apresentado, mas com decisões de outras ordens. Certa vez, quando comentava sobre o processo de inclusão e descarte de materiais de pesquisa com minha atual chefe, Manuela Dias – autora de sucessos como a novela “Amor de Mãe” e séries como “Justiça” e “Ligações Perigosas” – ela sabiamente me fez perceber o equívoco que é pensar esse processo a luz do input e output. A autora me fez entender que a pesquisa sempre traz um questionamento, uma coisa que não tinha passado por sua cabeça e não importa se isso estará explícito na história ou não “porque de alguma forma entrou em mim”, dizia. E certamente isso desencadeou outras ideias para trama ou desencadeará futuramente em outros trabalhos. De modo diferente, é um pouco o acontece na exposição de um filme quando o espectador observa todos os acontecimentos narrados em uma posição privilegiada e já manufaturados num jogo de revelação e engano capaz de gerar um novo significado as experiências vividas por cada um. Quantas ideais presentes no “Medida Provisória” germinaram nos corações e mentes dos mais de 400 mil espectadores? A resposta vem quando amigos, críticos, conhecidos e desconhecidos me confessam o que acharam do filme e como ele o atravessou. O mesmo acontece naquelas conversas aleatórias quando alguém solta a celebre frase que demonstra uma relação de identificação: “isso me lembra aquele filme.”. É bem verdade que não só de aceitação e boas críticas se faz um filme. É natural que existam aqueles que não gostaram do enredo, da direção, de uma cena específica ou até mesmo da atuação de um ator. Vale lembrar que o objetivo desta arte nunca foi se prender ao lugar de aceitação absoluta, ao papel de gerar apenas conforto em quem a consome. Mas será que, ainda na pré-produção, é possível prevê alguma reação do público? Eu advogo que sim e digo isso não porque sou (ou pretendo ser) uma espécie de guru do audiovisual, mas porque minha formação enquanto antropóloga me fornece pistas neste sentido. Afinal, ouvir, observar as pessoas, levar a sério o que elas nos dizem e entender os sentidos que atribuem as suas próprias ações tem sido especialidade da Antropologia há anos. Minha experiência profissional me leva a crer que um bom contador de histórias é, sobretudo, um bom ouvinte e certamente a pesquisa é um dos meios pelos quais escutamos o outro. Lázaro em seu livro intitulado “Medida Provisória” pontua: “a pesquisa nos alimentou e informou, embasando nossas discussões e nos ajudando a fugir de ciladas narrativas, com alertas para o que a população negra já não queria mais ver no audiovisual como características suas” (Ramos, 2022:15). Revisitando algumas produções audiovisuais que receberam críticas negativas e, também, ouvindo o que as pessoas me diziam nas entrevistas, estava nítido o que elas não queriam mais ver no audiovisual: “os personagens negros apenas como serviçal”; “negros se digladiando entre si por brigas que só beneficiam os brancos”; “pretos pegando em armas como policiais ou traficantes”; “mulheres negras nos estereótipos de “barraqueiras”, “fofoqueiras” ou “farofeiras””; “homens negros sob o arquétipo de malandros”; “pessoas pretas em situação de hipersexualização”. Essa larga lista além de indicar o que não seria mais aceito, indica ainda o que já não é mais novidade aos olhos do público. O novo estaria, quem sabe, na contramão disso tudo, nas brechas – entre uma coisa e outra – ou em um novo caminho que ainda está por ser feito. A princípio acreditava que a pesquisa para esse filme fosse direcionada exclusivamente para suporte do roteiro, como acontecia na maioria dos trabalhos que desenvolvi, onde o alcance do material estava restrito a pré-produção. No entanto, para minha grata surpresa, Lázaro nos conta que esse material foi transversal a todas as etapas de realização filme: “esse dossiê imenso, de mais de cem páginas, foi usado das formas mais variadas: para inspirar no modo de dirigir as cenas e mesmo na escolha de onde posicionar a câmera, para trazer subjetividades para os personagens e as situações que eles viveriam, para os atores se envolverem mais com cada cena, para ajudar a criar diálogos” (Ramos, 2022:14) O método audiovisual é único para cada realizador, o que consequentemente torna única a maneira com que ele se relacionará com o pesquisador: suas exigências em termo de conteúdo, prazo de entrega, modos de apresentação dos resultados e manejo dos dados. No caso do “Medida Provisória”, a pesquisa teve muito espaço e nos conduziu a muitas reflexões. Ela não foi manuseada como um livro sagrado ou um guia com regras do que se deve fazer, mas caminhou lado ao lado com as intenções, intuições e paixões dos realizadores do filme, se misturando as muitas vozes que contaram essa história. Em tempos tão controversos, em que a arte e a ciência são brutalmente atacadas, um trabalho que metodologicamente se propõe a manter junto esses dois pilares é também uma contribuição interessada em contestar e resistir a absurdos. Afinal, como nos lembra Krenak, a melhor maneira de adiar o fim do mundo é “sempre poder contar mais uma história.” Referências Bibliográficas: KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1 ed – São Paulo: Companhia das Letras, 2019. RAMOS, Lázaro. Medida Provisória: Diário do diretor. 1.ed. – Rio de Janeiro: Cobogó, 2022. [1] Doutoranda em Antropologia pelo Museu Nacional/UFRJ. Integrante do Laboratório de Antropologia e História (LAH/MN) e pesquisadora de conteúdo na TV Globo. |
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