O papel da pesquisa no audiovisual: notas sobre a experiência do filme “Medida Provisória” - Aline Maia Nascimento[1]
Não é novidade que a Antropologia e o Audiovisual são campos que se conectam e que há anos vem estabelecendo diálogos intensos. É possível que você conheça um antropólogo que se dedicou a produzir um filme ou, até mesmo, ter ingressado na indústria cinematográfica como um trabalhador do ramo. O contrário também é provável, um cineasta que se enveredou para Antropologia – alguns orgulhosos por desenvolver trabalho de campo a luz da teoria e do método etnográfico. Eu integro o primeiro grupo, sou uma antropóloga que desenvolve pesquisas para narrativas audiovisuais e que a cada convite para um trabalho a ser realizado no cinema ou na TV se pergunta: “o que a Antropologia pode oferecer para esse produto audiovisual?”. A resposta não é simples e geralmente só é alcançada ao longo do próprio trabalho de pesquisa. Ainda que alguns antropólogos, diretores, roteiristas, produtores ou espectadores esperem que minha função seja dar um “tom realista” a narrativa. É preciso se distanciar do chavão aristotélico que afirma que “a arte imita a vida”. Já sabemos que tanto a Antropologia quanto o cinema são artefatos culturais. Ambos, invenções humanas recentes cujos objetivos não podem ser reduzidos a “traduzir” ou “espelhar” a vida. Talvez, o primeiro passo para responder à questão seja assumir o interesse dos dois campos em construir e conectar mundos, estabelecendo relação entre as coisas e os sujeitos; entre o tempo, espaço e o individuo; explorando e captando leituras de universos particulares. Em 2017, quando o Lázaro Ramos me convidou para realizar a pesquisa para o longa ficcional “Medida Provisória” ele parecia saber bem o que queria com o filme, em tom muito confiante dizia querer provocar diálogos em temas raciais ainda sensíveis (tudo com leveza!) e para isso buscava equilibrar drama com humor. Queria, sobretudo, que em meio ao caos distópico construído no arco dramático, o filme fosse capaz de transmitir amor e despertar o sentimento de orgulho do Brasil e das pessoas que o constitui. A intencionalidade é algo que está sempre presente na linguagem fílmica, pois se trata de um produto que carrega desde sua concepção intenções bem delimitadas. Meu trabalho, geralmente, começa assim que o roteirista já sabe suas intenções. A partir daí, começamos a desenhar como elas serão oferecidas ao público que as degustará conforme suas próprias intenções. A pesquisa se inicia na etapa que chamamos de pré-produção, ou seja, na gênese do projeto. É comum que ela aconteça de forma simultânea a escrita do roteiro. Como costumam dizer, a pesquisa pode ser usada para “aperfeiçoar” / “melhorar” o roteiro dando a ele mais possibilidades de desenvolvimento, apontando caminhos ainda não explorados pelos roteiristas. Por vezes, ao pesquisador, também, é atribuída a função de trazer ao roteiro um terceiro olhar, quiçá mais distante, não tão contaminado com as paixões do autor. Há, ainda, uma outra função da pesquisa – para mim a mais empolgante e desafiadora – a tarefa de proporcionar inspirações, estimular a criatividade do roteirista. E por mais que exista um pensamento generalizado de que a criatividade é uma capacidade inata nas pessoas. Ou se tem ou não se tem. Sabemos que essa argumento não pode resistir a nenhuma comprovação séria. A criatividade, na verdade, é uma habilidade que precisa ser exercitada com frequência e a pesquisa é uma ferramenta para seu estímulo. O roteirista quando tem acesso aos dados da pesquisa se coloca em contato com novas experiências e atreve-se a pensar de maneira diferente. Esta imersão estimula sua competência criativa. No caso do “Medida Provisória”, Lázaro enfrentava o desafio de transformar uma peça teatral em um produto audiovisual. Já que o filme é uma adaptação da peça “Namíbia, Não!” de autoria do ator e dramaturgo Aldri Anunciação. Para essa empreitada Lázaro contou com o apoio de mais alguns roteiristas experientes Elísio Lopes Jr e Lusa Silvestre. Quando eu cheguei, Aldri, Elísio, Lusa e Lázaro ainda estavam escrevendo o roteiro, mas o material já tinha passado por alguns tratamentos. Eles tentavam retirar a grande carga teatral do texto. Nos dizeres de Ramos: “aquela peça se aproximava do teatro do absurdo” e sua transformação para o novo formato exigia naturalmente que outros contornos fossem ganhando espaço. Basta lembrar que a peça foi escrita apenas para dois atores – no palco, Aldri e Flávio Bauraqui eram acompanhados por vozes que faziam outros personagens e ajudavam a contar a história. Na primeira vez que li o roteiro para o filme, o time já havia feito algumas escolhas criativas acertadas, como a criação de personagens femininas fortes e complexas que ganharam centralidade na trama. Neste sentido, a pesquisa de personagens veio para endossar o caminho escolhido, apontando em outras histórias e vivências da vida real, mulheres como Capitu, Isabel, Sarah, Izildinha: pessoas comuns, vivendo situações incomuns e criando alternativas para lidar com problemas de ordem coletiva e, também, os seus mais íntimos. Contudo, as mudanças não pararam por aí. No que tange a pesquisa de conteúdo, Lázaro me pediu que eu indicasse temas que pudessem inspirar os roteiristas, colocá-los em contato com uma investigação cultural capaz de ampliar seus horizontes. A partir de uma leitura minuciosa do texto fui elegendo os temas, alguns já se faziam presentes no roteiro (mesmo que de forma tímida), outros se adentrassem poderiam modificar substancialmente os rumos da trama. Para citar alguns assuntos elencados, destaco: a hipersexualização do corpo negro, segregação racial, antissemitismo, aliados brancos, brancos bem-intencionados, a volta a África, povos imigrantes no Brasil, movimentos sociais com composição inter-racial, colorismo, pertencimento nacional, cabelo crespo e aceitação, relações inter-raciais, reparação racial, afrofuturismo, afropessimismo, branquitude, heterogeneidade dos movimentos negros e etc... O material de pesquisa era grande e muito diverso, contendo resultados de entrevistas semi-estruturadas, grupos focais, revisão bibliográfica dos temas, mapeamento de discussões travadas por internautas no Twitter e Facebook, memes que ganharam destaque nas redes sociais, histórias que ouvi em bares, nos transportes públicos... Contos, cenas de outros filmes, trechos de poesias e músicas. Eu costumava enviar os materiais para Lázaro que os lia com afinco para posteriormente debatermos cada ponto. Em nossos encontros, ele se mostrava sempre muito curioso, disposto a ouvir e indagar. Me desfiava a voltar com novos materiais que desenvolvesse ainda mais a história. Se mostrava interessado em escutar o que eu achava dos rumos que a trama ia tomando. Por vezes, ele próprio trazia questões provocativas que me faziam pensar. Como da vez que me perguntou o que eu acharia, se a personagem Capitu (Taís Araújo) esbofeteasse Isabel (Adriana Esteves). As escolhas do que entrava ou saia do texto e de como manejariam esse material de pesquisa nem eram tomadas ali sob minha presença, mas sim na sala de roteiro. De toda forma, era ótimo poder opinar e saber que meus “pitacos” tinham chances de ser “sementes” que poderiam germinar na mente dos criadores. Aos poucos a profissão de pesquisadora no audiovisual vai te ensinando a lidar com mais maturidade com o que chamo de “exercício do desapego” já que nem tudo que você apresenta ao roteirista será incorporado na trama e isso não tem relação com o material apresentado, mas com decisões de outras ordens. Certa vez, quando comentava sobre o processo de inclusão e descarte de materiais de pesquisa com minha atual chefe, Manuela Dias – autora de sucessos como a novela “Amor de Mãe” e séries como “Justiça” e “Ligações Perigosas” – ela sabiamente me fez perceber o equívoco que é pensar esse processo a luz do input e output. A autora me fez entender que a pesquisa sempre traz um questionamento, uma coisa que não tinha passado por sua cabeça e não importa se isso estará explícito na história ou não “porque de alguma forma entrou em mim”, dizia. E certamente isso desencadeou outras ideias para trama ou desencadeará futuramente em outros trabalhos. De modo diferente, é um pouco o acontece na exposição de um filme quando o espectador observa todos os acontecimentos narrados em uma posição privilegiada e já manufaturados num jogo de revelação e engano capaz de gerar um novo significado as experiências vividas por cada um. Quantas ideais presentes no “Medida Provisória” germinaram nos corações e mentes dos mais de 400 mil espectadores? A resposta vem quando amigos, críticos, conhecidos e desconhecidos me confessam o que acharam do filme e como ele o atravessou. O mesmo acontece naquelas conversas aleatórias quando alguém solta a celebre frase que demonstra uma relação de identificação: “isso me lembra aquele filme.”. É bem verdade que não só de aceitação e boas críticas se faz um filme. É natural que existam aqueles que não gostaram do enredo, da direção, de uma cena específica ou até mesmo da atuação de um ator. Vale lembrar que o objetivo desta arte nunca foi se prender ao lugar de aceitação absoluta, ao papel de gerar apenas conforto em quem a consome. Mas será que, ainda na pré-produção, é possível prevê alguma reação do público? Eu advogo que sim e digo isso não porque sou (ou pretendo ser) uma espécie de guru do audiovisual, mas porque minha formação enquanto antropóloga me fornece pistas neste sentido. Afinal, ouvir, observar as pessoas, levar a sério o que elas nos dizem e entender os sentidos que atribuem as suas próprias ações tem sido especialidade da Antropologia há anos. Minha experiência profissional me leva a crer que um bom contador de histórias é, sobretudo, um bom ouvinte e certamente a pesquisa é um dos meios pelos quais escutamos o outro. Lázaro em seu livro intitulado “Medida Provisória” pontua: “a pesquisa nos alimentou e informou, embasando nossas discussões e nos ajudando a fugir de ciladas narrativas, com alertas para o que a população negra já não queria mais ver no audiovisual como características suas” (Ramos, 2022:15). Revisitando algumas produções audiovisuais que receberam críticas negativas e, também, ouvindo o que as pessoas me diziam nas entrevistas, estava nítido o que elas não queriam mais ver no audiovisual: “os personagens negros apenas como serviçal”; “negros se digladiando entre si por brigas que só beneficiam os brancos”; “pretos pegando em armas como policiais ou traficantes”; “mulheres negras nos estereótipos de “barraqueiras”, “fofoqueiras” ou “farofeiras””; “homens negros sob o arquétipo de malandros”; “pessoas pretas em situação de hipersexualização”. Essa larga lista além de indicar o que não seria mais aceito, indica ainda o que já não é mais novidade aos olhos do público. O novo estaria, quem sabe, na contramão disso tudo, nas brechas – entre uma coisa e outra – ou em um novo caminho que ainda está por ser feito. A princípio acreditava que a pesquisa para esse filme fosse direcionada exclusivamente para suporte do roteiro, como acontecia na maioria dos trabalhos que desenvolvi, onde o alcance do material estava restrito a pré-produção. No entanto, para minha grata surpresa, Lázaro nos conta que esse material foi transversal a todas as etapas de realização filme: “esse dossiê imenso, de mais de cem páginas, foi usado das formas mais variadas: para inspirar no modo de dirigir as cenas e mesmo na escolha de onde posicionar a câmera, para trazer subjetividades para os personagens e as situações que eles viveriam, para os atores se envolverem mais com cada cena, para ajudar a criar diálogos” (Ramos, 2022:14) O método audiovisual é único para cada realizador, o que consequentemente torna única a maneira com que ele se relacionará com o pesquisador: suas exigências em termo de conteúdo, prazo de entrega, modos de apresentação dos resultados e manejo dos dados. No caso do “Medida Provisória”, a pesquisa teve muito espaço e nos conduziu a muitas reflexões. Ela não foi manuseada como um livro sagrado ou um guia com regras do que se deve fazer, mas caminhou lado ao lado com as intenções, intuições e paixões dos realizadores do filme, se misturando as muitas vozes que contaram essa história. Em tempos tão controversos, em que a arte e a ciência são brutalmente atacadas, um trabalho que metodologicamente se propõe a manter junto esses dois pilares é também uma contribuição interessada em contestar e resistir a absurdos. Afinal, como nos lembra Krenak, a melhor maneira de adiar o fim do mundo é “sempre poder contar mais uma história.” Referências Bibliográficas: KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1 ed – São Paulo: Companhia das Letras, 2019. RAMOS, Lázaro. Medida Provisória: Diário do diretor. 1.ed. – Rio de Janeiro: Cobogó, 2022. [1] Doutoranda em Antropologia pelo Museu Nacional/UFRJ. Integrante do Laboratório de Antropologia e História (LAH/MN) e pesquisadora de conteúdo na TV Globo. Comments are closed.
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